BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Terreno Baldio

Essa crônica de Nelson Rodrigues pode ser encontrada no livro "A cabra vadia", mas hoje, exclusivamente, decidi postar aqui. É memorável. 

Ah, como é falsa a entrevista verdadeira! Não sei se me entendem. Eis o que eu queria dizer: — trabalho em jornal desde os treze anos e tenho 55 anos. Façam as contas. São 42 anos. Depois de 42 anos de redação, o sujeito acumulou uma experiência em nada inferior às obras completas de William Shakespeare.Posso ir à boca de cena, alçar a fronte e anunciar para a platéia: — “Eu vi tudo e sei tudo”. Não vejam imodéstia nas minhas palavras. Qualquer repórter de polícia, em fim de carreira, terá a mesmíssima vidência shakespeariana. O mérito não é  nosso, mas estritamente profissional. E, depois de 42 anos de  vida jornalística, posso repetir: — nada mais cínico, nada mais apócrifo do que a entrevista verdadeira.

Não me esquecerei nunca do meu primeiro entrevistado. Se não me engano, era o diretor da Casa da Moeda (ou seria da Imprensa Nacional?). Mas não importam os títulos do homem, nem suas funções. O entrevistado é sempre o mesmo, variando apenas de terno e de feitio de nariz. No mais, há uma semelhança espantosa. Nem importa o assunto. Seja batalha de confete, ou Hiroshima, um cano furado ou os Direitos do Homem. O que vale é o cinismo gigantesco. O sujeito não diz uma palavra do que pensa, ou sente. E o pior é o gesto, é a ênfase, é a inflexão. O diretor da Casa da Moeda, que também podia ser da Imprensa Nacional, recebeu-me no seu gabinete. Falou uma hora, ou mais. Hora e meia. Mas fosse um Bismarck e daria no mesmo. Ele se perfilava para falar, como se a sua palavra fosse o próprio Hino Nacional.

Fiz outras entrevistas, centenas, dezenas de entrevistas. E todas me deixaram a mesma sensação de cinismo. No fim de alguns anos, eis a minha certeza definitiva, inapelável: — ninguém devia ser entrevistado, nem os santos. Até que, um dia, na crônica, ocorreume a idéia das “entrevistas imaginárias”. Aí estava a única maneira de arrancar do entrevistado as verdades que ele não diria ao padre, ao psicanalista, nem ao médium, depois de morto. Fascinou-me a “entrevista imaginária”. Precisava, porém, arranjar-lhe uma paisagem. Não podia ser um gabinete, nem uma sala. Lembrei-me, então, do terreno baldio. Eu e o entrevistado e, no máximo, uma cabra vadia. Além do valor plástico da figura, a cabra não trai. Realmente, nunca se viu uma cabra sair por aí fazendo inconfidências. Restava o problema do horário. Podia ser meia-noite, hora convencional, mas altamente sugestiva. Nada do que se diz, ou faz, à meia-noite, é intranscendente. Boa hora para matar, para morrer ou, simplesmente, para dizer as verdades atrozes.

Fiz “entrevistas imaginárias” com jogadores, dirigentes de futebol, literatos. Ainda anteontem, o Antonio Callado foi meu convidado no terreno baldio. Mas eu sentia, de maneira obscura, quase dolorosa, que faltava alguém no capinzal. “Mas quem?” — eis o que me perguntava. — “Quem?” E, súbito, um nome ilumina minhas trevas interiores: — “D. Hélder!”. De todos os vivos ou mortos do Brasil, era ele o mais urgente, o mais premente. E, de mais a mais, uma batina é sempre paisagística. Ontem, finalmente, houve, no terreno baldio, a “entrevista imaginária”. À meia-noite, em ponto, chegava d. Hélder. Lá estava também a cabra, comendo capim, ou, melhor dizendo,  comendo a paisagem. À luz do archote, começamos a conversar.  Primeira pergunta: — “O senhor fuma, d. Hélder?”. Resposta: — “A entrevista é imaginária?”. Acho graça: — “Ou o senhor duvida?”. E d. Hélder: — “Se é imaginária, fumo. Qual é o teu?”. Digo: — “Caporal Amarelinho”. Cuspiu por cima do ombro: — “Deus me livre! Matarato!”. Faço a pergunta: — “Que notícias o senhor me dá da  vida eterna?”. Riu: — “Rapaz! Não sou leitor do  Tico-Tico  nem do  Gibi. Está-me achando com cara de vida eterna?”. No meu espanto, indago: — “E o senhor acredita em Deus? Pelo menos em Deus?”. O arcebispo abre os braços, num escândalo profundo: — “Nem o Alceu acredita em Deus. Traz o Alceu para o terreno baldio e pergunta”. Ele continuava: — “O Alceu acha graça na vida eterna. A vida eterna nunca encheu a barriga de ninguém”.

D. Hélder falava e eu ia taquigrafando tudo. Aquele que estava diante de mim nada tinha a ver com o suave, o melífluo, o pastoral d. Hélder da vida real. E disse mais: — “Vocês falam de santos, de anjos, de profetas, e outros bichos. Mas vem cá. E a fome do Nordeste? Vamos ao concreto. E a fome do Nordeste?”. Não me ocorreu nenhum outro comentário senão este:  — “A fome do Nordeste é a fome do Nordeste”. D. Hélder estende a mão: — “Dá um dos teus mata-ratos”. Acendi-lhe o cigarro.  D. Hélder não pára mais: — “Diz cá uma coisa, meu bom Nelson. Você já viu um santo, uma santa? Por exemplo: — Joana D’Arc. Já viu a nossa querida Joana D’Arc baixar no Nordeste e dar uma bolacha a uma criança? As crianças lá morrem como ratas. E o que é que esse tal de são Francisco de Assis fez pelo Nordeste? Conversa, conversa!”.

Lanço outra isca: — “É verdade que o senhor vai para o Amazonas?”. Riu: — “Onde fica esse troço? Ó rapaz!  Ainda nunca desconfiaste que a fome do Nordeste é o meu ganha-pão? E o Amazonas é terra de jacaré. Tenho cara de jacaré?”. Concordo em que ele não tem nenhuma semelhança física com um jacaré. Indago: — “E o comunismo?”. D. Hélder conta: — “Quando estive nos Estados Unidos, bolei um cartaz assim: O arcebispo vermelho! Era eu o arcebispo vermelho, eu!”. Insinuei a dúvida: — “Mas esse negócio de comunismo é meio perigoso”. Nova risada: — “Perigosa é a direita. A direita é que não dá mais nada. O  arcebispo vermelho  fez um sucesso tremendo nos Estados Unidos”.

Pede outro cigarro. Fez novas confidências: — “Sou homem da minha época. Na Idade Média, eu era da vida eterna, do Sobrenatural. Fui um santo. É o que lhe digo: — cada época tem seus padrões. Benjamim Costallat, no seu tempo, era o Proust. O Charleston já foi a grande moda. Pelo amor de Deus, não me falem da vida eterna, que é mais antiga, mais obsoleta do que o primeiro espartilho de Sarah Bernhardt. Hoje, a moda não é mais Benjamim Costallat, nem o Charleston. Entende? É Guevara. O  santo é Guevara. E acompanho a moda”. Desfechei-lhe a pergunta final: — “E a Presidência  da República?”. D. Hélder respira fundo: — “Depende. A fome do Nordeste é o barril de pólvora balcânico. Fome, mortalidade infantil, muita miséria e cada vez maior. Chegarei lá”. Era o fim da “entrevista imaginária”. Despedi-me assim: — “Até logo, presidente”. Respondeu: — “Obrigado, irmão”. E antes de partir fez a última declaração: — “Olha, as donas de casa têm uma simpatia para curar dor de barriguinha em criança. Acredito mais na simpatia do que na ressurreição de Lázaro”. Disse isso e sumiu na treva”. 

(publicação original em 14 de março de 1968)

 © Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / dezembro de 2018

sábado, 24 de novembro de 2018

Ruas de paralelepípedos

Passei os últimos dois meses envolvido com a política, exclusivamente com a eleição presidencial. Não desgrudei do celular, das mensagens e notícias a toda hora. E as pesquisas? A cada uma que saía, uma agonia tomava conta de mim. Aquilo me consumiu diuturnamente, que minha ira se espalhou pelos terrenos áridos das redes sociais.

Desde o atentado, minha fúria só aumentou que cheguei a pensar: — "não é dessa vez que tiramos o pé da lama. Não é!". Imaginei que aquela faca, pontiaguda, poderia ter cortado também todos os nossas artérias de sonhos de país. No fim, a turbulência passou e  agora estamos limpando a sujeiras das solas dos sapatos para entrar o ano de alma lavada. O saldo foi algumas amizades perdidas nas redes sociais, xingamentos (sem desculpa) e uma vida que segue agora o seu curso. Afinal, o Brasil se sairá bem desse lamaçal. Eu espero.

Apaziguado, tirei os livros da estante, voltei às leituras. Acordei e baixei no meu e-book um livro que ainda não havia lido de crônicas rodrigueana (não sei se existe o neologismo). O "Óbvio Ululante" é um apanhado daquilo que Nelson Rodrigues nos deixou de melhor, fora da dramaturgia. E por que eu falo isso? Ontem, não consegui pregar o olho, e já era tarde. Antes de apagar o abajur, li uma crônica que ele se lembrava de uma paixão de infância. A moça (menina moça) era Lili, uma rechonchuda que morava no caminho da sua escola. Lili apanhava do pai e o pequeno Nelson ouvia seus urros e gemidos da rua. Comecei a pensar, então, na minha infância, que depois puxou pela adolescência. Lembranças e lembranças que não estancavam, retardando ainda mais meu sono.

Não tenho voz e cor da infância. É como um filme de Chaplin: preto e branco, sem voz e com uma trilha sonora de fundo. Minto. Lembro, sim, da cor do meu uniforme escolar: camisa branca, calça boca de sino azul marinho e conga alpargatas. Eu já falei também do tom rosa velho da minha casa, que já foi azul clara, com o número 139 sobre a veneziana. Mas voz nenhuma vem. Assim, eu na minha mais tenra idade (aos 10 e 11 anos), atravessava uma ponte gelada para estudar em outro bairro. Mas nenhum gravador registrou uma sílaba que tenha dito. Súbito, penso que fui um faroleiro na vigília do mar. A solidão do mar noturno e um silêncio de vozes, enquanto ondas gigantes chicoteiam pedras e cais. Eu sentia mesmo era paixão.

Ali, antes dos 10 anos, eu já havia me apaixonado. Depois, já nos 11 anos, e assim foi até a fase adulta. (O homem que nunca se apaixonou, não viveu.) As paixões não tinham desejo sexual, mas silhuetas, admiração e contemplação. Elas mudavam de direção, mas eu era o mesmo menino: traquino em bando, e tímido no privado. O olhar era lânguido, e a boca balbuciante e sussurrante. (Talvez por isso não encontre uma frase da minha infância.) Nas paixões platônicas não se têm fala, não têm "eu te amo", não tem olhares penetrados, não tem sorriso encarado. Tudo é calado e só sentido; um coraçãozinho já ardendo e sofrendo.

Na quinta série (ali nos meus 11 anos) havia uma garota. Ela era Mônica. Loirinha dos olhos castanhos arredondados. Encantadora, com uma educação aristocrata e beleza nata. Mas eu não era o único. Havia uma fila de meninos de olhos naquela menina simpática de silhueta delicada. Naquela época, as meninas na escola usavam saias quase um palmo acima dos joelhos. (Com um espelho pequeno dava para ver a calcinha.) Aquele par de pernas era totalmente permitido pelo regime militar, com a panturrilha branca sobre as meias também brancas.

Um dia, fomos expor numa feira de ciência. Um fotógrafo do jornal nos clicou. No dia seguinte, estávamos na front page. Ela linda, sorrindo, olhando para a lente. Ao lado, duas meninas distraídas. E eu com meu amigo cabelo de fogo ao lado, em pé, fazendo caretas. Guardei aquele recorte, mas hoje não sei mais onde está.

No ano seguinte, sem se despedir, ela já não estava mais na escola. Seus pais haviam se mudado para Goiânia, se não me falha a memória. Foi a notícia que chegou. Ela foi embora, mas eu tinha o recorte do seu sorriso pueril. Logo minha paixão se dissipou no nevoeiro da ponte sobre o rio. Outros encantos surgiram, com outras meninas na escola e suas saias de pernas à mostra. Mas paixão não houve por um tempo, até esquecer o recorte.

Como disse, nas minhas lembranças não há muitas falas. Havia, contudo, uma voz fraca. Era do meu pai me chamando sobre o muro do vizinho. Aos 52 anos, sua voz já era cansada pelo cigarro e as dores no peito. Então, algo me vem sempre quando adentro nesse quarto escuro. Se não há voz, há um cheiro imortal. E ele exala na atmosfera da minha vida, até os novos dias, como um perfume eterno. Pode até parecer esquisito, mas a aromática lembrança é uma mistura de batata frita, argamassa e tijolo molhado.

Foi um dia qualquer entre 1973 e 1974. Acho que era 1974 (já tinha 12 anos). Nossa casinha passava por uma reforma. Meu pai puxou a casa até à divisa com o vizinho do lado direito. Construiu um paredão que, para rebocar, precisou erguer andaimes. Lá no alto, a cumeeira, os caibros e terças de um telhado à francesa, de uma água só. Um forro de madeira fechava nossa casa para suportar o frio do inverno. Essa era a obra necessária: espaçar centímetros e acolher.

Fecho os olhos e vejo esse dia. Eu sentado à mesa de tampo laminado azul (diziam fórmica), fazendo um desenho com uma régua de madeira. Uma cortina improvisada dividia aquele ambiente do externo, da parte da obra, do paredão. Tudo era improviso naquela cozinha sem reboco e pintura. O cheiro da obra (argamassa e tijolo) se misturava com cheiro de batata fritas que saia do fogão da minha mãe. (Foi uma época que comíamos batatas quase todos os dias.) A batata era cortada serrilhada, de espessura fina. Era cedo ainda para o jantar, havia luz do dia. O barulho da frigideira era sinfônico.

Eu estava naquela fase dos meus desenhos de futebol. Explico. Aprendi a desenhar os lances de gol vendo as ilustrações de Gepp e Maia, que saiam semanalmente no Jornal da Tarde. Um dia levei um desses desenhos à escola (o gol do título do Palmeiras de 1974), e ganhei, dias depois, um autógrafo do goleiro Leão, que tinha parentes na minha cidade e aparecia por ali de vez em quando. Não me lembro se foi minha professora de português que conseguiu. Virei tão especialista em desenhar gols, que passei também a criá-los também. Desenhava os gols impossíveis, com a bola batendo na trave cinco, seis vezes antes de entrar. E sempre era um gol com titularidade de um Leivinha, de um Ademir da Guia ou Edu. Até um amigo me perguntar: — "Esse gol é mesmo verdadeiro?".
Copa de 1974 - por Gepp e Maia

Aquela tarde/noite ficou como um quadro, um Michelangelo na galeria da minha memória. Quando você entra na grande sala, ele está lá, estampado na parede. A reforma, o desenho, os tijolos sem reboco, minha mãe e a fritura que saia do seu fogão. Aquele dia virou segredo de confessionário, um quadro que eu não desenhei sobre a mesa azul. Ele se fez sozinho em mim.

Fiz esses parágrafos para chorar de saudade... 

Volto às paixões que alimentei pelas garotas da minha adolescência. Eu, como quase todos, me apaixonava pelas meninas da escola. Houve depois uma Maria Rita que usava meia 3/4, que eu torcia para encontrar no caminho, na ponte, e chegar na escola ao seu lado, como quem exibe um troféu. Sem declarar nada, devo ter dito muitas bobagens e coisas de meninos.

Mas houve uma paixão por uma garota — na minha lembrança era uma moça e não uma petiz — que morava perto de casa. Meus olhos a descobriram durante as peladas de rua, porque eu jogava no paralelepípedo na frente do seu portão. Ela morava, melhor, ela surgia numa casa que ficava no alto de um terreno, numa edícula. Uma família pobre como a minha, de três filhos. Era seu irmão quem compunha o meu time de rua. E quando ela saia para ir à padaria, meus olhos travavam até que dobrasse a esquina.

À noite, eu sentava no portão para vê-la vindo da escola, pontualmente às oito e quinze da noite. (Era um horário estranho para aquela escola onde ela estudava. A aula começava às quatro da tarde e ia até às oito, já no jantar.) Ali, no portão, eu fazia plantão, para vê-la desfilando suas bochechas rosadas, segurando os livros e cadernos apertados juntos aos seios já com sutiã. 

Até que um dia, ela desceu a rua ao lado de um rapaz arcado, magro e bem mais velho. O quanto mais velho? Sei lá, uns 17 anos.  Ele era loiro, nariz pontiagudo e tinha o cabelo liso, fino e penteado do lado, caindo na testa. Achei que era só um garanhão, porque não imaginava que ela pudesse se interessar por uma tábua envergada. Mas o medo vinha junto:  e se ela ceder? Todos os dias eu me perguntava: "o que ele tanto fala à ela que eu não consigo dizer?". Passaram alguns dias, aquela deusazinha da rua, de bochecha rosada, desceu a rua com ele com as mãos sobre seus ombros. Ali eu sepultei minhas esperanças e mais uma das minhas paixões se encolheu para sempre. Acho que chorei por dentro, por me achar mais feio que uma tábua envergada.

De nada valeu querer chamar sua atenção, por muitas vezes, com meu futebol de rua, que jogava descalço sobre o paralelepípedo em frente ao seu portão. Ela não me via com olhar nenhum. Eu era mais um dos meninos. Além de tudo, eu era sardento e tinha cabelo grosso, espetado e sem shampoo. Para piorar, me apelidaram de "gordo", mesmo não sendo. Depois, a arcada dentária tinha diastema. Talvez sejam essas minhas desculpas para não me aproximar. O medo do "não" entalou e morreu comigo.

Guardei ali, nas juntas dos paralelepípedos das antigas ruas, meus dedões estourados de chutar bola descalço. Claro, isso foi antes do surgimento do kichute. E o primeiro apareceu nesses idos, ali pelo meio dos setenta. Era o calçado que estava ao alcance de todo garoto pobre de periferia. Dava para jogar bola no paralelepípedo da rua, na terra do campinho e depois servia para ir à missa de domingo. E havia também o segredo do cadarço. Ninguém amarrava o kichute de forma convencional. Ou era na canela ou era por baixo, dando voltas na sola, com as travas não permitindo que o cadarço se arrastasse no chão. Eu amarrava por baixo. Achava que ficava mais firme nos pés.

Hoje, tenho respeito pelas ruas de paralelepípedos, porque elas guardam em si histórias de crianças, de peladas descalços, de brincadeiras, enterros, procissões e paixões. O paralelepípedo é o que decora minha alma de infância. O paralelepípedo é o adorno que emoldura a simplicidade das casas. Não são ruas de passagem; são de imortais peladas, onde deixei meu dedão sangrando por muitas tardes. São ruas da feliz esperança, de paixão pelas meninas de bochechas rosadas. E tudo com o aroma bom da frigideira de batata fritas. Minha infância não teve voz, mas teve muito cheiro bom.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / novembro de 2018

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Pesar de você


Dois dias depois da eleição de Jair Bolsonaro, num ato de protesto em favor da democracia (oi?), Guilherme Boulous arrastou alguns punhados de estudantes — sempre eles — para seu delírio revolucionário; também para dizer que agora eles seriam a “resistência”, como se estivéssemos às portas de um regime de exceção. Entre um discurso e outro, vi alguns jovens (18 anos, por aí) entoando “Apesar de você”, que rolava numa caixa de som.

A música composta em 1970 era uma carta (sem selo e postagem), em versos subliminares, direcionada ao presidente que Chico Buarque não gostava: Garrastazu Médici. Médici era o “você” da música-homenagem. Etecetera e tal laiá laiá...

Quase meio século depois, a música foi exumada e agora é retumbada em atos de protestos dos movimentos de esquerda pelo país. (Na cabeça deles, ainda vivemos aqueles anos. Ou: ninguém escreveu algo melhor para o Brasil de 2018). Mesmo esses jovens (anos 2000), que nunca tinham ouvido, num desconhecimento histórico, passaram a cantar, como um ato contínuo.

Mas, preste atenção na letra. Ela não se assemelha com nada do momento atual do país; momento de mudança, de pôr ordem na casa, de combate à corrupção, de respeito aos símbolos nacionais e à Constituição. Tudo sob os olhares da velha e boa democracia. Uma roupa surrada, puída querendo se vestir numa visão nova de país. Por outro lado, a música se encaixa melhor (mais apropriada) nos 14 anos de Lula/Dilma. O trem fantasma de onde o país saiu e agora quer esquecer.

O caminho que o PT estava conduzindo o país, sob a agenda do Foro de São Paulo ipsis litteris, era autoritário e ditatorial. Não há mais dúvida! Um Estado inchado, corrupto e de poderes plenos ao partido da estrela vermelha. Sob seus pés, uma população miserável, sem emprego, sem educação, indefesa, amedrontada e viciada em assistencialismo. É fato: tudo que eles diziam combater era o que queriam nos servir: a grande pátria latino-americana e socialista. Fomos salvos e despertados pela Lava Jato e por Sérgio Moro, aos 40 minutos do segundo tempo.

Hoje, quando vejo um jovem desses, geração snowflake (rebelde sem causa), cantando o que nem sabe o que representou, eu sinto mesmo um pesar dele; um pesar de você.

 © Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / novembro de 2018

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Quem deu a facada?

Quem deu a facada em Bolsonaro foram os mesmos que levaram o país a essa miséria intelectual que nos aprisiona hoje. Ou você só acredita em miséria baseada na fome do Nordeste?

Adélio foi só um instrumento e o portador do objeto perfurante; aquele que consumou o ato. Pare e pense: Por que matar uma só pessoa e não um outro ou todos? Por que Bolsonaro? Simples de explicar. Porque ele representa o perigo para a desarticulação do sistema perverso, corrupto e canalha que nos envolve por décadas. Quem deu a facada foram eles.

Há tempos o país não se reconhece mais. E isso não é obra do acaso, como alguns idiotas ainda acham. Isso tem fórmula, alquimia e foi calculado para acontecer nesse tempo. Um povo atingido por todos os níveis de miséria humana não tem reação nenhuma ao poder, irá se vergar a ele e lamber suas botas. Um povo entorpecido por esse sistema é capaz, inclusive, de tirar da cadeia um condenado por corrupção e lavagem de dinheiro de dentro e transformá-lo em presidente. Ao mesmo tempo, achar intolerante, homofóbico, racista, misógino um com a ficha limpa. Um dos problemas do país, dessa miséria intelectual, é se compadecer com o que dizem e não enxergar o óbvio que acontece, de fato, a um palmo do nariz.

Eis o país que deu a faca ao criminoso; um país padecido na miséria humana e intelectual. Ele não se reconhece mais. Não vê gravidade no seu e no futuro de seus filhos e netos.

Isso precisa ter um dia do “basta”.

O país precisa parar de entregar a faca aos criminosos que irão, mais cedo ou mais tarde, golpeá-lo pelas costas.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / setembro de 2018

segunda-feira, 26 de março de 2018

Quando chama o coração

Eu tenho andando esses dias, digamos assim, mais emotivo. Então, aproveitei para vir aqui no meu refúgio e recostar no meu divã. Por vezes já caí numa cama com o coração nas mãos — meus 20 anos —, como se estivesse doente fisicamente, mas é alma, só alma. Apartei-me dos noticiários do cotidiano, da política, das discussões, da chateação e o que se revelou foi um peito entornando. Amor por alguém? Não, amor que não se põe em colo nenhum, mas que se sente no ar.

(Não tenho certeza, porque não lembro, se foi Nelson Rodrigues quem disse que o único amor puro é aquele que brota na nossa infância. Deve ter sido ele, vou pesquisar...)

Tenho passado uns tempos de muitas discussões e debates nas redes sociais. E por essas eu andei exaurido, fadigado, intolerante, gritando e xingando virtualmente. Fico atônito e inconformado, como muitos, porque queria que as coisas andassem de forma ligeira. Que a justiça viesse a galope, dragando e arrastando tudo e todos para dentro de um calabouço, onde só cabem os marginais do poder. Mas nem tudo depende de meu esforço, ou do meu pensamento positivo — eu penso, logo acontece. Há que se ter resiliência para aceitar e aguardar o tempo onde tudo acontecerá.

Nessa encruzilhada, redirecionei meus pensamentos para outros assuntos e acabei captando paisagens perdidas na janela da minha vida: — Olha aquele amor que pouco se comenta, está passando ali, virando uma esquina... Ele ainda habita no mundo, nos becos, nas casinhas dos arredores, nas montanhas; e, como terra molhada, tem cheiro de chuva. Há pessoas se amando nas nuvens,  nas madrugadas, em lençóis, fronhas, e ouvindo canções de amor. Há pessoas se olhando nos olhos, dizendo "sim" e colocando aliança nos dedos, sem receio do futuro. Ainda há.

(O outono se anuncia e toda vez que ele chega, vem um vento forte dos bons sentimentos; mais frio nas manhãs e mais calor no coração. E tudo fica mais à flor da pele. Os sentimentos brotam como folhas secas no cimento duro da calçada.)

Toda vez que ouvimos falar de histórias de amor, vem à mente uma tragédia como uma sobremesa acre depois do jantar, como dedos e unhas são justapostos. — Porque ninguém pode ser tão feliz assim, e uma tragédia deve acontecer — responderá o leitor. Nunca é um amor com final feliz. Sempre os protagonistas terão um câncer ou uma morte que impeça aquilo (o amor) de ser velho, de gerar filhos, netos e bisnetos; que impeça o amor de ser eterno. Claro que há, na vida real. Em ocasiões raras, já deparei com histórias de casais octogenários quando um morre o outro vai logo em seguida. Os antigos diziam que fulano "morreu de paixão". Não é uma dramaturgia shakespeariana, mas historias de gente de verdade, que não vão para os livros.

E por lembrar Shakespeare, veja que Romeu e Julieta é uma história que se repete ainda nos nossos dias. Digo que ela se repete, porque aqueles que ainda insistem nesse tema (romancistas e roteiristas) seguem a linha do amor que acaba em tragédia, em atropelamento, em doença, em crime e vingança. O amor que mata por amor, que morre por amor, por parecer grande demais ao mundo e o mundo não saber lidar com ele. E todos ficam com aquele nó na garganta de que algo poderia ser diferente. Aí eu pergunto: não dá para ser feliz para sempre, e além da eternidade? Amor que acaba em tragédia não é amor.

Bem, vamos ao que interessa. Já faz um ano, estava procurando algo novo para assistir na TV, cliquei numa série que, só pela sinopse minhas pupilas dilataram: No início do século XX, uma professora linda, recém formada, de família aristocrata, abandona seu conforto para lecionar numa pequena vila na fronteira dos EUA com o Canadá. Como sou capturado por filmes de chapéus e vestidos longos, me peguei a ver, mas já com medo de ser uma dessas tragédias de desencontros, conflitos (com ganhos e perdas) e morte com faca atravessando um corpo na beira da estrada.  

When Calls The Heart é muito maior que isso. É uma história de amor; do amor que se dá e recebe de volta; do amor que é possível e para sempre. Do amor que não se confunde com paixão. Daquele que brota no coração à léguas de distância das suas almas; e seguindo seu rastro e aroma como se o coração chamasse: venha, estou aqui! E faz seu imaginário flutuar, de não ter nem forças para encostar a cabeça no travesseiro e dormir. Você sonha acordado: é disso que sinto falta, desse amor...

A série é baseada no livro homônimo (1983) da escritora canadense Janette Oke. Numa pesquisa rápida, Janette tem 83 anos, e ela se dedica a escrever romances falando sobre sua fé cristã, onde, em muitas vezes, as mulheres são protagonistas.

Depois desse parênteses técnico, sigamos. Elizabeth Thatcher, a bela protagonista, vai atrás do desconhecido. Ela vai em busca de sonhos, com coragem, vivacidade, independência, como num retiro espiritual da sua vida. Ao chegar, ela encontra uma Coal Valley chocada com o acidente na mina de carvão que vitimou mais de quarenta homens. Por consequência, muitas viúvas tendo que criar seus filhos, sozinhas. Desde então, ela começa a perceber que não iria encontrar vida fácil naquela cidadezinha. Mas havia algo maior que tudo no caminho: o amor.

A escola, onde iria lecionar, não existe mais. Ela terá que improvisar e ministrar suas aulas num saloon, que fica fechado durante o dia. As crianças daquela cidade parecem despertar nela um outro sentimento que ainda não tinha tido: a dor pela perda de alguém próximo. É hora de ser mais forte e ajudá-las a enfrentar esse momento. Ao mesmo tempo da sua chegada, o policial de montaria Jack Thornton também apeia na cidade como representante da lei. Jack é jovem, belo, viril, corajoso e justo. O primeiro olhar entre eles é trocado no primeiro episódio e nunca mais eles serão os mesmos. Eles se apaixonam à primeira vista.

O amor que brota, cresce e toma conta entre o policial Jack e sua amada professora Elizabeth é algo de sonho, de conto de fadas. Eles têm pureza na alma. O primeiro beijo vão episódios para acontecer. Eles se amam nos olhares, nos gestos de bravura  e reconhecimento; uma admiração sem muitas palavras. Num dos episódios, Elizabeth tenta editar suas memórias em um livro, e quando ela manda uma carta para a editora, recebe um "não" como resposta. Imediatamente, Jack, percebendo sua tristeza, a surpreende ao confeccionar um único livro para ela. Ele, além disso, ilustra seus textos com seus desenhos. A conquista do coração com gestos singelos. Ela se joga em seus braços quando ele lhe entrega o livro.

O episódio do Natal é também surpreendente e mágico.  (Sem dar muito spoiler, mas vou contar só esse.) Às vésperas do Natal, surge na cidade um velhinho com seu cachorro e numa carruagem cheia de bugigangas. Ele tem um slogan: "eu tenho exatamente aquilo que você precisa". Exibe simpatia e diz pertencer a lugar nenhum, mas vive no mundo... As crianças ao avistarem na sua carruagem, já o identificam: Santa! Mas algo inesperado acabou estragando o baile da polícia que Jack iria levar Elizabeth. O trem, onde trazia os presentes das crianças de Hope Valley (a cidade havia mudado de nome alguns capítulos anteriores), descarrila. Imediatamente, a cidade se junta para fabricar presentes com os objetos que as pessoas possuíam em casa. Nenhuma criança podia ficar sem.

Tudo deu certo. Depois da encenação do Natal e a distribuição dos presentes, Jack recebe do velhinho viajante uma caixinha de música, e lhe diz: — não precisa pagar... Ao mesmo tempo que Elizabeth chega em casa exaurida e vê na sua árvore de Natal um bilhete de Jack pedindo para comparecer ao saloon numa roupa informal. Ela põe o seu vestido de baile e vai até ao encontro com Jack. Quando chega, vê um ambiente todo iluminado à luz de vela, como se fosse um salão de baile. Jack aparece segurando aquela caixinha de música de repertório único, e eles dançam. Antes de partir da cidade, aquele velhinho arremessa uma bola de basebol para o alto, até ela explodir em fogos de artifício e fazer a neve cair na noite de Natal de Hope Valley. Ele era mesmo o papai Noel.

WCTH é puro amor, sem tragédia. Totalmente politicamente incorreta, não porque retrata um período que já parece longínquo da nossa história (o século XX), mas por não dar espaço a discussões como gênero, homossexualismo, feminismo e outros temas do maldito mundo de hoje. Ao contrário, a cada episódio o público leva consigo uma mensagem de compaixão, amizade, heroísmo, resgate, bravura, justiça, fé e amor. A série transmite valores conservadores que uma novela da Globo não mostraria, e sem ser piegas. Tudo se condensa e a faz você aspirar, como se segue um aroma de café fresco quando os olhos se abrem pela manhã.

Enquanto a quinta temporada ainda não chega ao Brasil — Go Netflix! —, os fãs americanos estão se emocionando, todos os domingos, com cada episódio dessa temporada. Tenho acompanhado alguma coisa via Twitter. O ápice foi no domingo (18/03) com o casamento de Jack e Elizabeth; aquele que a Hallmark Channel chamou de "o casamento da década", porque era tudo que o público esperava desde o primeiro episódio. Eles eram correspondentes em tudo e o casamento foi a premiação e a consequência desse amor. O casamento foi para selar o compromisso já assumido daquelas almas, desde o primeiro olhar. Gostaria de reproduzir toda a cena da celebração, mas deixo aqui resumido só um instante: na igrejinha de Hope Valley (Elizabeth ministrou muitas aulas à suas crianças), uma lágrima — única e pequena lágrima — escorre pelo canto de seus olhos, quando ela declara todo o seu amor, e termina com a voz murmurada: — I'm yours.

"They say There´s fireworks in empty Sky. They say. That your stomach fills up with butterflies. They say. You will know. Cause your heart takes flight. When you finally find THE ONE..."
A coisa foi levada tão a sério, que parecia ser vida real. A atriz Erin Krakow (Elizabeth) trocou o sobrenome de solteira de sua personagem para o de casada, na bio da sua conta de Twitter. Passou a se chamar "Elizabeth Thornton". Uma realidade fora do comum, enquanto a hashtag "Hearties", que marca os apaixonados pela série, chegou ao oitavo lugar naquela tarde/noite nos EUA. Os hearties estavam com os olhos cheios de lágrimas. Eu, sem assistir, também fiquei.

O Canal dos EUA Hallmark Channel (tem um histórico de ser um canal cristão com conteúdo para a família), produtor da série, anunciou na mesma semana que WCTH terá a sexta temporada. O sucesso do episódio do casamento teve uma repercussão tão grande, que eles apostaram numa última e derradeira temporada (última?). Isso só comprovou uma coisa: as pessoas, lá e em qualquer lugar do mundo, ainda quererem ver mesmo é história de amor, e com final feliz.

Nessa, meu imaginário já viajou ao término dessa linda história: Jack e Elizabeth irão envelhecer em Hope Valley. Lutarão por outras causas e amores; terão filhos e netos; e, por fim, uma eternidade para viverem. E o mundo ainda respira, porque existe amor. E ele está no ar.

(Lembrei-me da frase de Nelson Rodrigues: "Como sempre me apaixonei por minhas professoras, acho que as grandes paixões do homem surgem quando ele está entre os seis e dez anos, apenas". Então, eu posso dizer que tive a minha Elizabeth Thatcher.)

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / março de 2018