BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)

sábado, 9 de maio de 2015

Crônica de um joseense bêbado


Nota: Esta é uma crônica de uma noite de verão para quem tem 50 anos, ou mais, é de São José dos Campos ou morou na cidade nos idos da década de 1980. Só vai entender quem viveu.
Era para ser uma sexta-feira qualquer, mas aquele dia não podia ser em vão, porque também era meu aniversário. Prontamente, escolhi botar minha melhor beca: camisa hang ten, calça fiorucci e perfume madeirado do Boticário. Cheguei ao banco já mirando os ponteiros do mondaine, já com preguiça de dizer "bom dia":  — Chega logo fim do dia! Chega logo, porra! Que hoje eu quero ficar numa nice e tomar todas. Passa, passa...
O dia voou mesmo e meu caixa bateu. Quando registrei o ponto, às seis cravada, já sentia na saliva o regozijo etílico daquela noite. O bar mais próximo era o AMARELINHO, e para lá eu disparei. De supetão, já trombei com dois amigos de colegial num happy-hour, e ali formamos uma patota. Depois de algumas risadas com rodadas de chope, servidas pelo melhor garçom da casa, o corintiano, decidimos, por fim, iniciar uma "via sacra" pelos bares, já que estávamos no embalo. A noite era uma promessa e estava só começando; estava calor, céu estrelado, era meu aniversário, e eu me sentindo o máximo. — Vamos arrebentar a boca do balão!
Antes, faço um parêntese para descrever aqueles dois amigos de aventura. O magro era Álvaro. Ele era o "magro", porque passava fácil por debaixo da porta. O bodão (nunca lembro o nome de batismo) era um gaúcho de um metro e oitenta, bom de briga e com cara de bode. Precisa mais explicação?
Começamos pelo GIRASSOL, ali na rua do cartório. Estava já movimentado e um conjunto bom tocando MPB e clássicos do rock. Como não havia lugar para sentar, ficamos em pé na calçada e de copos secos. Cadê o garçom?
— E aí, vamos nessa no MEZON? — Sugeriu bodão.
Para lá escorregamos. Não havia tanta moçada, mas para não passar batido, tomamos alguns rabos-de-galo, Campari, Martini e hi-fi. Glut! Glut! E de lá partimos para o SOBRADO. Barzinho supimpa e com muita pitchula dando sopa. Umas keep-coolers, depois uma cuba-libre, uma olhadinha aqui e ali (buscando uma piscada), uma conversa, um cigarro, um fósforo... Conclusão, aquele ambiente estava troncho: todo mundo caçando (com olhares) e a caça não querendo se servir — pelo menos para nós três. Pulamos para outra parada.
Em frente ao parque, desopilamos no PARADA 800. Para quem curte um bar different space e agitado, era ali. Drive-in, com extensão no estacionamento do parque, para um malho mais longo e atrevido (passar a mão nos peitos). Bateu uma fome, farejei aquela pizza napolitana do PEREQUIM no ar. Pensei: — Se comer agora, minha noite já era... A maneira de engambelar a fome foi pedir um drink, acender um cigarro e chupar um halls. Aquela altura já estava enxergando um mundo colorido a minha volta (todo bêbado acha tudo lindo). A rua já estava sendo tomada por patotas e boyzinhos com suas cinquentinhas e cocotas.
Já era quase duas da matina e ainda faltavam algumas passagens: WESTERN HOUSE, POST-OFFICE, FRANGÃO e CARLITOS. Tudo sem um Engov no bolso. 
— Vamos nessa, já que mulher está difícil. E beber, isso, sim, está fácil. 
Não sei dizer, com exatidão, onde fomos primeiro, como chegamos, o que se passou e o que bebemos nessas derradeiras estações — há episódios, comprovados, que bêbado esquece mesmo! Mas, lá pelas tantas e com a cabeça cheia, uma coisa eu sustento: rachamos o bico de tudo que falávamos, víamos e imaginávamos. Misóginos perdidos numa noite de verão.
Quando completamos o prometido e todos os bares possíveis já estavam passados, liquidados, visitados e ingeridos, resolvemos fechar a noite numa discoteca, porque eu já estava dançando sozinho e sem música no meio da rua. O bodão sugeriu: 
— Quem topa a GARDEN!
O magro interferiu:
— Não, não. Eu prefiro a CIRCUS. Hic!
Já no lucro da noite, qualquer bodega era esperta e toda baranga já passava por Brooke Shields. Por fim, decidimos que não iríamos a nenhuma delas, escolhemos a NUMBER TWO, ali perto da caixa d´água. Desfilava mais brotinho.
— E se não der picas? — Perguntei.
— Vamos nessa pro "desmanche", LA CAV ou PILÃO. Arrastamos umas veinhas lá, numa nice — Interrompeu, rachando o bico, o magro.
Gargalhamos juntos e muito fácil, porque bêbado ri  à toa e de qualquer coisa tosca e idiota.
Batemos à porta com a discoteca lotada e muito brotinho, como previsto. — Tá crowd! Eu já não conseguia sentir língua e paladar; depois, enxergar, a longa distância, era quase impossível. Dançar, naquela condição, seria um vexame. Meu mundo já girava em torno de mim sem eu me movimentar: round, round round... O jeito foi beber mais. Depois de pedir meu último whisky no balcão, vi chegar do meu lado a mulher da minha vida. Morena, alta, linda, monumento, escultural... Eram tantos predicados. Onde eu andei esses anos todos que não topei esse brotinho por aí? — Me perguntei com a mão no peito. Mamado e instigado, fui logo desembestando um xaveco no seu ouvido:
— Qual o nome do broto? Você vem sempre aqui? — Mexendo o gelo no copo. 
Ela soltou um risinho e assentiu: 
— Hoje é a primeira vez que venho aqui. Meu nome é Juliana.
Não hesitei:
— Você é muito linda, mais que demais... (Ela talvez não conhecesse a música ainda).
— Obrigada. Eu sou tímida. — Disse, olhando para o lado.
Aquela boca era imantada, sedutora, farta; ela era a Sônia Braga que Dancin`Days nenhuma já viu... Uau! Foi quando o bodão me puxou num canto, me tirando daquele castelo, e com aquele sotaque de Pelotas, gritou no meu ouvido
— Tu não percebeste não, guri?!
O que ele (tão bêbado quando eu) percebeu que eu não? — Pensei comigo.
Eu, assombrado: 
— Nada, achei ela linda, só isso. Maior pitchulinha, pô!
Ele: 
— Ela é ele, cara!
Pendi a cabeça para o lado, e depois de constatar o óbvio, que meus olhos não podiam captar (ela não tinha seios), decidi que era hora de picar a mula. Arrastei-me até à portaria, fiz um cheque garranchado e despenquei porta afora. Fui bordejando até encontrar um carro que se parecesse com o meu. No trajeto, baixei na sarjeta para regurgitar um pigarro amarelo escuro, praguejando aquele travesti: — Perobo do caralho!
Quando avistei o carro, percebi que meu relógio havia sumido do pulso. Mas nem quis calcular o preju. Olhei para o carro e achei um pouco diferente, daquele que havia saído de casa. Mas, como os quatro pneus estavam lá e calibrados, abri. Bati a chave na ignição, funcionou, engatei e sai. Com a graça de Nosso Senhor, apontei na minha rua com o dia já rompendo. Estacionei o carro em frente ao portão, já imaginando a bronca do coroa. Aquela trilha sonora de galo cacarejando e cachorro latindo se misturava com o som da discoteca, que ainda zunia em meus ouvidos. Que bode me esperava? Oh meu Deus! 
No pé de pano, tirei a chave da porta do bolso e enfiei na fechadura. A chave não entrava. Insisti uma, duas, três vezes mais. Afastei e olhei a fachada, depois certifiquei o número para ver se não estava entrando em casa errada. Não estava. O número conferia, embora duvidasse da cor um pouco desgastada. Foi quando percebi alguém abrindo a porta pelo lado de dentro. Pensei: — Lá vem esporro. Quase entalei, quando um senhor crispado e de pijama listrado, que não era meu pai, abriu a porta. Ele me fitou com os olhos vermelhos de ira e adiantou:
— Está tentando invadir minha casa, senhor?
Pela primeira vez nos meus vinte anos de idade, alguém me chamou de senhor. Objetei:
— Eu moro nesta casa. É... pelo menos eu acho...
O velho crispou novamente, com o dedo em riste:
— O senhor só pode estar bêbado, porque eu moro aqui há mais de 20 anos! 
Além da dúvida "onde eu estava", me surtiu outra: "quem eu era". Naquela situação não adiantava perguntar a ele, mas a mim mesmo: — Quem sou eu? Alguém tem um espelho, por favor? E esse cachorro que não para de latir na minha cabeça?! Distanciei, olhei novamente o número da casa, os apetrechos, os adornos, o jardim, a rua... Pus a mão no queixo, mirei aquele homem, com cara de sargento de milícia, e fiz a minha derradeira pergunta:
— O senhor pode me dizer que horas são e que dia é hoje?
O velho, já querendo fechar a porta para se livrar de mim, e sem olhar o pulso, refutou:
— Seu bêbado maluco! SÃO QUASE 7 HORAS E HOJE É SÁBADO, DIA 10 DE JANEIRO DE 2015. Não sabe, não?
Arregalei os olhos, dei dois passos para trás, mais dois, atravessei o portão e falei comigo, bem baixinho:
— Acho que viajei num DeLorean, ou bebi tanto que perdi a noção do tempo. 
© Antônio de Oliveira / arquiteto urbanista cronista / Maio de 2015

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