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Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Batman - a crônica


Em 1989, enquanto ansiava pela estreia nos cinemas do novo filme de Batman, um colega da FAU me apresentou o gibi “O Cavaleiro das Trevas” de Frank Miller. Devorei o gibi e tirei toda a impressão trocista que tinha de um herói quase morto dentro de mim. A história era de uma figura envelhecida e séria, bem diferente das lembranças do Batman, da série de 1966, com Adam West e Burt Ward. Aquele pastelão que arrancava gargalhadas e a gente ficava pensando de um dia para o outro: como Batman vai se escapar dessa? Ele escapava sempre, até usando a magia e forças de Superman - herói em escala maior de poder que a sua. Mesmo assim, Batman sempre foi um pouco mais humanizado, e por ele ser falível, eu o adorava.

Fui ao cinema e me apaixonei pelo filme de Tim Burton. Primeiro porque retratou uma Gotham City como vi no gibi: escura, de arquitetura inóspita, mas pungente com grandes construções, num cenário esfumaçado. Depois as atuações de Michael Keaton como Batman e Jack Nicholson no papel de Coringa. Batman era astuto, viril, pegador de mulher (tentou Vicki Vale). Ele não deixou dúvida do seu propósito. A justiça de Batman era só encontrar seu alter-ego, o bandido que matou seus pais na porta de um teatro, Jack Napier (o Coringa). Ele o encontra, o transforma em Coringa e o destrói como todos desejavam que fosse feita sua justiça. Depois disso, ele se refugia em sua Bat-caverna e a vida parece voltar ao normal. Mas não na sua ânsia por fazer justiça. Pegou gosto pela coisa e pela máscara.

Em “Batman - Retorno”, o mesmo diretor, o mesmo ator para Batman e um vilão que veio do esgoto e tenta ser político para se vingar da família e do mundo que o abandonou por causa de sua monstruosidade. Um político que sai do esgoto para emergir no asfalto? Parece coisa bem atual e verdadeira... Eles saem dos esgotos, mas não se esquecem de onde vieram, com suas atitudes vis voltam sempre às origens. Danny DeVito foi o Piguim desse filme de 1992, com Michelle Pffeifer como mulher-gato. Nesse filme fica evidente a corrupção, e o povo quase comprando Pinguim com ar de bonzinho, até ser desmascarado por Batman. Ele volta ao esgoto, mas Batman continua sem os aplausos do povo de Gotham.

Como no antecessor “Batman Begins”, no filme “Cavaleiro das Trevas” de 2008 vi um herói sem muita afirmação, failed. Talvez porque não quisesse vê-lo terminar a trama fugindo da polícia. Quem tem que fugir é Coringa, pensei. Disse que Batman parecia um medroso e talvez fosse mesmo. Um anti-herói escondendo atrás de uma máscara.

Voltando à Gotham, a impressão que fica aqui também é que as pessoas têm mais afirmação e aceitação pelos bandidos. Ou não veem neles tanta maldade assim. Fosse o contrário, não deixaria que Batman fosse perseguido. Perceberia nele o defensor da lei, da ordem e da justiça. Não sabemos se é assim que pensam em coletivo, ou se não pensam, mas tudo transparece que pouco importam se ele prende ou não os bandidos. Sendo povo, não nos colocamos no lugar de ninguém, exceto se esse alguém for muito próximo. No resto, iremos confundir sempre Batman com Coringa.

Por que Batman não agrada a população de Gotham City? Pelo mesmo motivo que toda população de qualquer cidade (imaginária ou real), não presta atenção em quem é vilão e quem é mocinho; quem verdadeiramente faz o bem à sociedade e quem é contraventor. O povo não se interessa por Lei; ele só quer saber se sua zona de conforto continua confortável. Batman nunca distribuiu cesta básica a ninguém ou fez campanha pelo seu nome na política. Ele só quis que a população, que ele defende, tivesse mais consciência política e colocasse os atores de sua sociedade nos seus devidos lugares.

Na condição de milionário, Bruce Wayne poderia distribuir parte da sua fortuna e transformar a sua fundação em uma ONG, ajudando os pobres indefesos e excluídos de Gotham; depois equipar a polícia para prender os bandidos, sem parecer Batman. Seria mais bem visto por todos. No fundo, ele escolheu ser Batman, uma figura mascarada, obscura e pouco política; tentando mostrar, quem são os verdadeiros inimigos da sociedade. Mas o povo pouco importa e só quer praia, fazer festa, churrasco e com muito circo para dar risada.

Toda população tende à mediocridade quando só espera acontecer e ser servido. Ninguém quer saber de justiça e ter que pensar; todos querem é que alguém (mais poderoso) dê alguma coisa que não precise se esforçar para ter. Quem clama por Batman como herói somos nós, público, que vamos ao cinema para vê-lo esmagando seus inimigos. Poucos, ou quase ninguém, iria ao cinema se o filme mostrasse a vitória de um bandido. Já a população de Gotham, está acostumada com o bandidismo e pouco importa de que lado ele está.

Saindo do cinema e voltando para nossa vidinha social é o mesmo comportamento, também não enxergamos nossos "Batmans", ou quem simplesmente quer mostrar-nos o lado justo e injusto da sociedade. Queremos os perversos, os corruptos, pelo brilhantismo de serem maus-caracteres e rirem da nossa cara. Gostamos de quem riem de nós - como uma risada mortal.

Na minha infância, os heróis usavam capas, espadas, pistolas a laser, máscaras e voavam. Eram defensores da humanidade, do bem e da paz no planeta terra. Hoje não tenho mais nenhum. Eu não tenho mais heróis. Eles se apagaram da minha memória por anos e não mais voltaram. Sinto saudades dessa pureza. Enquanto podia acreditar eu os adorava, me davam guarita, segurança e confiança. Tudo acabava bem com eles.

Quando ficamos mais maduros deixamos de admirar o imaginário e passamos a admirar-nos em seu lugar. Ou, exercitar a fé em lutar pela vida individual. A espiritualidade voltada cria em nós esperanças. Cada qual vira herói de si.

Gostei quando um sacerdote disse que o mundo cristão precisava passar uma imagem mais humana do Cristo. Caindo por terra a sua infinita santidade e luz – um herói. Para nos servir mais de exemplo é preciso que tivesse mais semelhança conosco na proximidade humana.

Meu pai não foi herói e muito menos bandido. Ele era comum e tinha só o vicio o cigarro, o que lhe acelerou a morte. E nem por isso deixei de me espelhar, ou captei dele alguma coisa que ainda não sei. Foi instantâneo e inofensivo a sua imagem projetada em mim. Os outros meus heróis infantis morreram de overdose ou continuam sendo perseguidos pela polícia. Assim, a história nunca terá um final feliz mesmo.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / junho de 2012.

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