BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)

sábado, 6 de agosto de 2011

A era do rádio


Vi recentemente o novo filme de Woody Allen, “Meia-noite em Paris”. Saí do cinema recomendando para todo mundo, me entusiasmei. Allen tem essa coisa de tratar o real e o imaginário sob o mesmo prisma; seus personagens fazem essa transgressão sem nenhum temor – vão e voltam; entram e saem. O que torna a trama uma viagem sem fim. Esta me tocou fundo; entrou  pelo túnel do tempo, com o olhar no passado sob as noites da cidade luz.

No filme, traz à Paris – a fim de colher inspiração – um escritor de roteiros para filmes americanos, Gil Pender, vivido por Owen Wilson; ele está escrevendo seu primeiro romance. Sua noiva Inez lhe faz companhia na viagem, com o propósito de viver noites maravilhosas na cidade luz. Ele é obcecado pelo passado, crendo que tudo que foi feito e quem existiu lá, era bem melhor. Descreve também ser um adorador das chuvas que molham seu corpo, sem nunca se importar em carregar uma “umbrella”. Numa dessas noites de embriaguez, sozinho, ele é convidado a entrar num Peugeot antigo, indo parar numa festa. Na verdade, aquela carruagem de rodas sem cavalos, o conduz de volta à Paris dos anos de 1920, onde irá encontrar com personagens ilustres e pelos quais admirava: Ernest Hemingway, Pablo Picasso, Cole Porter, Salvador Dali, Scott Fitzgerald... Ainda foi agraciado por conhecer Adriana, a sedutora mulher – uma ilustre desconhecida –, por quem ficou apaixonado. Mas, qual a mensagem do filme?

Esperei quase o final do filme para decifrar, ou perceber a mais clara das mensagens que surdiu. Pode haver uma obsessão, mas nunca poderemos dizer que as melhores coisas da vida ficaram no passado, que vivemos ou não (imaginamos). No passado que voltarmos, outras pessoas que lá vivem, também acharão outros passados melhores - foi meu insight. Ele queria se auto afirmar sobre o que escrevia, dando seus manuscritos a esses personagens, com o intuito de receber elogios e confirmação do grande escritor que deseja ser - justificando suas viagens noturnas. Para ensejar sua aventura, ele se ajeita mesmo é com Gabrielle, a moça que vendia disco vinil na praça; e tal, como ele, não se importava em tomar chuva. Fica a dúvida, se ela era do seu presente, ou veio do futuro para encontrar e amar o grande escritor: Gil Pender.

Já faz tempo, tenho trocado o hábito de ver TV por ouvir rádio, quando me levanto. Gosto de acordar e começar o dia com café e notícia. O rádio ainda é uma companhia e continua a encantar; percebi que ele faz nossa imaginação fluir, penso com ele e personifico as vozes que ouço. No dia, vejo garis que trabalham solitariamente varrendo as ruas e os parques da cidade com o radinho no bolso do macacão – a espantar solidão. A locução do futebol pelo rádio é inigualável, dinâmica e emocionante. O mesmo jogo que vemos pela TV, só tem graça se for completado pelo som do rádio. Como os mais antigos diziam da locução de futebol, o jogo é irradiado. Deduzo, então, que o rádio não é do presente, vem do passado; daquele que não deixamos morrer; daquele passado que sobreviveu ao mundo carregado de mudanças e outros meios mais velozes de comunicação. Como nem a TV - o rádio com imagem -, colocou o rádio no passado distante – obsoleto –, então, nada mais irá substituir o prazer que suas ondas criaram em nós.

Antes da chegada da televisão em nossos lares, era pelo rádio que nossos antepassados adoçavam sonhos e ilusões. Dou minha explicação para o time do Flamengo ter a maior torcida do Brasil: a rádio Nacional era a única rádio que transmitia para o Brasil todo – década de 1940 – e irradiava somente os jogos do campeonato carioca. Junto vinham as notícias, radionovelas e programas de humor.

A rádio Mayrink Veiga – RJ foi precursora do melhor programa humorístico das décadas de 1940 até 1960. Está no anuário de 1950: naquela época, a rádio Nacional detinha as maiores estrelas do rádio como Orlando Silva, Francisco Alves, Silvio Caldas, Emilinha Borba; entre os dez melhores programas, nove eram exibidos pela Nacional, mas somente um programa era da rádio Mayrink Veiga – o humorístico PRK-30 -; com o prefixo de uma emissora "de ondas longas e compridas, curtas e encolhidas". O maior show de humor já feito no rádio no Brasil estreou nas ondas da rádio carioca em outubro de 1944. Para muitos, o maior programa de rádio já feito até hoje. Sendo disputado por outras emissoras, passou, posteriormente, para a rádio Tupi-RJ, de Assis Chateaubriand, até findar em 1964. Foram exatos vinte anos de PRK-30 e de muitas gargalhadas no ar.

Lauro Borges e Castro Barbosa
Tive oportunidade agora de conhecer e ouvir as célebres piadas criadas pelos seus apresentadores Lauro Borges e Castro Barbosa. Tudo ainda muito hilário, cheio de deboche, irreverência, improviso e criatividade. Lauro Borges criou 28 personagens ao longo de sua carreira no rádio. É fato, muitos dos humoristas que hoje conhecemos pela TV, como Chico Anísio, fizeram escola ouvindo PRK-30.

O rádio os imortalizou, como aqueles anos de ouro. Depois, com a chegada da TV, eles foram parar nas emissoras da época e aquela coisa do rádio, da imaginação se perdeu. Lauro Borges se suicidou em 1967, quando descobriu um câncer; Castro Barbosa faleceu em 1975. O humor deve ainda muito a eles. Se pudesse, viveria aquela época, só para ouvir PRK-30, como uma volta no tempo: "Bléim! Ao oubir esta suabe gongada, entra no ar, como se fosse uma barbuletinha dourada a PRK-30!...”.

Entrei num Peugeot antigo agora também, eu sei, mas foi bom...

Voltando a Woody Allen, ele dirigiu outro filme que se chamava “A era do rádio”, mas é só coincidência com o que acabo de narrar. Tudo o que nos faz melhor hoje (não somos frutos de nós mesmos), vem dessa raiz do passado que, por vezes, nos incita a voltar com os olhos e ouvidos mais atentos a tudo que nos trouxe até aqui; e assim podermos ser mais puros, essenciais, compreensivos com o presente e esperançosos com o futuro. Como o personagem do filme, podemos achar que tudo e todos eram realmente melhores no passado; até descobrir que outros viajantes do tempo pensam como nós. Não há nada de errado com a linha do tempo, certo com as lições que trazemos para a vida.

Era como um livro de Ernest Hemingway; poderia ser como um quadro de Picasso, ou como um filme de Luís Buñuel, ou quem sabe, uma música de Cole Porter; mas era a PRK-30, uma obra de arte que o rádio eternizou, sem tempo de padecer. Por noites, não me deixa dormir ou embalam involuntariamente meu sono, até me levar a dar boas gargalhadas pelo canal do inconsciente, dormindo. PRK-30 veio até mim pelo dial do passado, e é tudo de bom!

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / agosto de 2011.

Um comentário:

Thania disse...

Eu li sua crônica, como sempre, muito boa, sempre nos transporta para o seu mundo. Além do presente extra de apreciar a leitura ao som de Chico!