BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Quase sem querer


Sou comedido e, por muitas vezes, me abstenho a dar título que não está na biografia das pessoas, ou atribuir algo que não são. Nessa, posso confundir o motorista com o cobrador; o garçom com o maître; o empregado com o patrão. Assim também, há como discriminar a inteligência da sabedoria, a honestidade da competência — cada qual na sua frase e contexto. Por muito tempo, atribuíram a Renato Russo o título de poeta; um poeta do cancioneiro popular. Não, ele era um bom letrista de música e só. Já disseram o mesmo de Vinícius de Moraes e Bob Dylan. Vinícius era poeta quando fazia poesia, e letrista, quando sentava, com seu parceiro Toquinho, para compor canções. As poesias são outras palavras e têm a sua própria musicalidade — desprovida de instrumentos e harmonia musical.

Mas voltando a Renato, lembro-me dele escrevendo coisas lindas na sua curta carreira. Letras que se encaixaram em harmonias musicais como vagões nos trilhos; hinos que ecoaram no grito da juventude daqueles anos 80 — a geração coca-cola. Tem uma em especial que gosto: “Quantas chances desperdicei / Quando o que eu mais queria / Era provar pra todo o mundo / Que eu não precisava / Provar nada pra ninguém...”. Precisou Renato dizer isso, para todo mundo começar a não ter que prestar contas da vida a ninguém. Eu também me apeguei ai. Renato expressou nesta letra, seus dramas e conflitos pessoais. Desperdiçou oportunidades para provar que não precisa de provação nenhuma. Chorou suas melancolias e se libertou: não preciso provar minhas qualidades ao mundo, elas estão aí. Desabafou.

Nossa sociedade é cruel, há cobranças com provações a todo o momento — explícita ou muitas vezes velada —, que tenhamos sucesso em tudo na vida: ter corpo sarado, ter carro do ano, frequentar os melhores lugares, ter imóvel próprio, ter alguém especial, ter filho na melhor universidade, viajar nas férias para o exterior, obter vantagens em negócios e ter dinheiro aplicado na bolsa. Obrigam-nos a alcançar o auge, como se todo sucesso (a felicidade) fosse medido pela régua social das conquistas que nos coloca acima de tudo e de todos — o cume do mundo. Vivemos inconscientes, a provar que nós somos especiais para o mundo; e por consequência, deixamos de lado a nós mesmos e à família de onde viemos — nossos verdadeiros valores.

Nem todos os jogadores de futebol serão fenômeno, mas o futebol precisa de todos para existir. Há pessoas de sucesso que não aparentam; são quietas e não se mostram. Há pessoas satisfeitas, felizes e nem por isso, serão reconhecidas quando saírem à rua. Essas não precisam provar nada para ninguém e não desperdiçam vida para ser o que não são. Hoje, dou valor às pessoas pelo que elas viveram, pelo seu caminhar e não pelo que elas têm ou aparentam. Aprendi a viver com o pouco, e assim me encontro com mais frequência na felicidade, nas minhas andanças pelas aldeias e cidades. O mais importante do caminho é o caminhar.

Numa entrevista, que divulguei do médico psiquiatra Roberto Shinyashiki, ele afirma que vivemos os tempos da valorização do parecer, das aparências. A mentira como método de sobrevivência, nesta sociedade que pune, por falsa moralidade, a quem não está no staff social dos bem sucedidos. “Hoje, como as pessoas não conseguem nem ser, nem ter, o objetivo de vida se tornou parecer. As pessoas parecem que sabem, parece que fazem, parece que acreditam. E poucos são humildes para confessar que não sabem.” — disse Shinyashiki.

É a vida solapando seu próprio dono; a todo tempo construindo um perfil falso de si mesmo — numa confusão existencial. Vai se encontrar lá na frente na frustração e na depressão. Aí, vem Renato nesta mesma música e endossa: “Que mentir pra si mesmo / É sempre a pior mentira”. Os escritores Barbara e Allan Pease dizem que mentimos por duas razões: evitar a dor ou obter um ganho. A primeira é a mais branda, pois todo mundo mente para minimizar a sua e a dor alheia; a segunda talvez seja a que mais esteja na moda. Mentimos para obter sucesso e ter aparência que somos bem quistos. Num de seus livros, a escritora Lya Luft, diz: “Por isso a palavra, o abraço, o olhar, o momento de atenção, são infinitamente mais importantes do que o cartão de crédito, o compromisso, a viagem, o novo cargo”. Quando vivemos a aparência, também está na mesma oração, os objetos da vida que servem a ela: a mentira, a hipocrisia e a falta de humildade. Vamos nos apegar a isso e nos esquecer de outros gestos que fazem nos tornar tão próximos. É de surpreender ao ver pessoas bem sucedidas socialmente, serem humildes também.

Vi recentemente o filme “O discurso do rei”. Achei genial. Na trama vemos duas figuras antagônicas: um candidato à realeza inglesa, George VI (Colin Firth), uma pessoa fraca e com limitação imposta pela sua gagueira, desde os 04 anos; e um médico (Geoffrey Rush), um sujeito despretensioso, perspicaz, sem nobreza, mas com os pés no chão. O médico ajuda o rei a resolver seus problemas, invadindo sua intimidade e atingindo seu psiquismo. Como imaginar que uma pessoa poderosa — um rei — tenha suas frustrações, medos e limitações? Somos todos iguais, precisamos da humildade para assumir nossas limitações e viver o que somos de verdade, de carne e osso; assumir nossas raízes, de onde viemos; e os caminhos, que abrimos com as ferramentas que temos. Construiremos nossa canoa com as madeiras que dispomos. Navegaremos — rio abaixo ou rio acima — sendo nós mesmos, sem mistérios, sem sentimentos de derrotas, sem provar nada que não seja nosso braço e nossa força.

Vão dizer isso ou aquilo sempre de como alcançaremos nosso sucesso pessoal — as cobranças. Não dou provações e me calo. As palavras internas vão caindo: preste atenção no seu foco e na estrada; vivemos a repetir tudo para um dia aprender, de fato. “Sei que às vezes uso palavras repetidas, mas quais são as palavras que nunca são ditas?” — de Renato Russo, quase sem querer.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / fevereiro de 2011.

2 comentários:

Unknown disse...

"Quase sem querer" você fez um belo texto! Parabéns!!!

Rosana disse...

Você me impressiona com tamanha sensibilidade. Obrigada por me dar o prazer de conhecer seus escritos!